Sobrevivência dos Vagalumes

Trechos do livro SOBREVIVÊNVIA DOS VAGA-LUMES, de Georges Didi-Huberman

“(…) trata-se de um passeio inocente entre amigos, no campo, ao cair da noite.
E eis então a reaparição, a descoberta encantada dos vaga-lumes: “Eles são uns vinte que se movimentam em torno das folhagens. Nós exclamamos […] cada um conta onde e quando os viram Beleza inespe rada, no entanto, tão modesta: “Outros dois voam um atrás do outro, um pouco mais longe, dois pequenos traços alter nados de morse luminosos na parte inferior do talo.” Beleza siderante que é a de “ver isso, ao menos uma vez na vida”. Em certo momento, entretanto, “os últimos vaga-lumes se vão, ou desaparecem pura e simplesmente”. E a página de maravilhamento se fecha. Redesaparecimento dos vaga-lumes. Mas como os vaga-lumes desapareceram ou “redesapareceram”? É somente aos nossos olhos que eles “desaparecem pura e simplesmente”. Seria bem mais justo dizer que eles “se vão”, pura e simplesmente. Que eles “desaparecem” apenas na medida em que o espectador renuncia a segui-los. Eles desaparecem de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los.” p. 46

“Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes. Aprendo que existem ainda, vivas, espalha das pelo mundo, duas mil espécies conhecidas desses pequenos bichinhos (classe: insetos, ordem: coleópteros, família: lampírides ou lampyridae). Certamente, como observava Pasolini, a poluição das águas no campo faz com que morram, a poluição do ar na cidade também. Sabe-se igualmente que a iluminação artificial – os lampadários, os projetores – perturba consideravelmente a vida dos vaga-lumes, como a de todas as outras espécies noturnas.” p. 49

“Seria criminoso e estúpido colocar os vaga-lumes sob um projetor acreditando assim melhor observá-los. Assim como não serve de nada estudá-los, previamente mortos, alfinetados sobre uma mesa de entomologista ou observados como coisas muito antigas presas no âmbar há milhões de anos.Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco mil vaga-lumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela.” p. 52

“Teriam as criaturas humanas de nossas sociedades contemporâneas, como os vaga-lumes, sido vencidas, aniquiladas, alfinetadas ou dessecadas sob a luz artificial dos projetores, sob o olho pan-óptico das câmeras de vigilância, sob a agitação mortífera das telas de televisão? Nas sociedades de controle – cujo funcionamento geral foi esboçado por Michel Foucault e Gilles Deleuze – “não existem mais seres humanos” aos olhos de Pasolini, nem comunidade viva. Há apenas signos a brandir. Não mais sinais a trocar. Não há mais nada a desejar. Não há então mais nada a ver nem a esperar. Os brilhos – como se diz, “lampejos de esperança” – desapareceram com a inocência condenada à morte.” p.59

“Pois não foram os vaga-lumes que foram destruídos, mas algo de central no desejo de ver.” p.59

“Trata-se nada mais nada menos, efetivamente, de repensar nosso próprio “princípio esperança” através do modo como o Outrora encontra o Agora para formar um clarão, um brilho, uma constelação onde se libera alguma forma para nosso próprio Futuro. Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes, rigorosamente falando, uma tal constelação? Afirmar isso a partir do minúsculo exemplo dos vaga-lumes é afirmar que em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política.” p.60

“Se a imaginação – esse mecanismo produtor de imagens para o pensamento – nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se liberarem constelações ricas de Futuro, então podemos compreender a que ponto esse encontro dos tempos é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado reminiscente. Deve-se sem dúvida a Walter Benjamin essa colocação do problema do tempo histórico em geral.” p.61

“O pensamento à altura da experiência é algo como uma bola de fogo ou um vaga-lume, admirável e em desaparecimento. (…) Não se pode, portanto, dizer que a experiência, seja qual for o momento da história, tenha sido “destruída”. Ao contrário, faz-se necessário – e pouco importa a potência do reino e de sua glória, pouco importa a eficácia universal da “sociedade do espetáculo” -, afirmar que a experiência é indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às sobrevi vências e às clandestinidades de simples lampejos na noite.” p.147

“Existe um elo secreto entre ação e pensamento […] esse elo consistia no fato de que, […] ação e pensamento, ambos acontecem sob a forma do movimento e que, portanto, a liberdade que os funda, é a liberdade de movimento.” p.152